quinta-feira, 17 de junho de 2010


Também venho relatar as minhas sensações de um dia inesquecível no Colégio Estadual Landulfo Alves...
Em articulação com alguns professores foi marcada a sessão do documentário "Encontro com Milton Santos, ou O mundo global visto do lado de cá", do diretor Silvio Tendler para cerca de 5 turmas de primeiro e segundo ano. Foi a nossa primeira experiência com este filme em uma escola.

Primeiro a chuva que caía desde a noite anterior na cidade transtornou o horário combinado para a chegada do material para a sessão. A geografia da nossa cidade não combina muito com a pontualidade britânica. Chegar com o material era o início do que seria nossa aventurosa sessão cineclubista. Enquanto Déa escalava as paredes do auditório pregando o pano preto necessário para a penumbra que possibilitasse a projeção, verificávamos que todos os ar-condicionados do lugar estavam quebrados. Exibir um documentário para adolescentes em um auditório quente seria uma tarefa bem difícil... Nesse momento é que a união da equipe faz uma diferença. Em pouco tempo estava tudo organizado. Os meninos já entravam no auditório e distribuíam-se pelas cadeiras. A inquietude deles me remete ao tempo escolar. Sair da sala para uma atividade diferenciada é uma festa. Possibilidade de explorar as relações em outro ambiente, de se despojar ainda mais.  Com a sala já quase cheia, era hora de começar o filme.   Enquanto Mariano, um dos cineclubistas do Landulfo, apresentava o filme, comecei a notar mais detalhadamente, o ambiente da sessão.



O filme começa com uma citação de Jean Paul Sartre, e desde o primeiro take, ficou claro que aquela seria uma sessão agitada. Os meninos não se concentravam por diversos motivos. Haviam 10 jovens na frente da sala interessados no filme. Os outros 90 ouviam múscia, conversavam, bincavam, se abraçavam. Enquanto uma refinada leitura dos elementos que geraram as sociedades excludentes eram apresentados no filme, através do olhar de Milton Santos, nós nos dividíamos na tarefa de fazer os meninos perceberem que havia um tesouro sendo posto ali, bem diante dos seus olhos. Em vão.  Milton Santos buscava valorizar a história do presente, e nós tentávamos desesperadamente mudar aquele pequeno instante de horas. Em determinado momento a sessão é parada para que um professor, e depois Carol, intervenham, pedindo silêncio e respeito.

Observo os panos pretos pendurados de maneira irregular, ao mesmo tempo que escureciam a sala, também impediam a passagem de vento. A sala, também chamada de auditório, tem pilastras dispostas ao longo de todo o espaço, criando zonas cegas em relação à tela. Era uma caricatura mal feita de uma sala de cinema. Mas ao longo de três anos dentro das escola públicas, nos juntamos aos agentes da educação  na luta pela transformação das condições materiais dadas por um sistema perverso em condições materiais necessárias para a construção de uma nova política, como sugere Milton Santos em uma de suas falas. Me senti naquele momento em uma ação de guerrilha.

Cada depoimento no filme é emocionante. E assistí-lo naquele contexto fazia emergir uma série de sentimentos tão fortes quanto contraditórios. De repente o trabalho do Lanterninha me pareceu uma grande utopia. Formar cineclubistas em um ambiente onde deve-se formar público acima de tudo, me pareceu um sonho idílico. Um desânimo grande se abateu. Com Carol a meu lado, compartilhávamos esse sentimento de que a transformação que movia o projeto há três anos, não seria possível. A angústia pelo desinteresse dos meninos era diretamente proporcional à importância do conteúdo trazido no filme.
Restava esperar pelo debate e a chegada do nosso convidado Jorge Conceição, geógrafo, professor, militante do movimento cineclubista, que com sua atuação politicamente comprometida e acima de tudo, apaixonada, poderia dissipar a alienação instalada naquela sala. Em uma passagem do filme, Eduardo Galeano sentencia que neste momento, somos caricaturas tristes de modos de vida que nos impõem de fora, governados por sistemas de poder que cada dia nos convence que não há virtude maior do que a virtude do papagaio. E nesse jogo de repetição de ecos de vozes alheias,  o nosso desafio é oferecer ao mundo, um mundo diferente. Mas como isso será possível?

Jorge chegou pouco antes de terminar o filme, bem a tempo de vivenciar a inquietação e a agitação que a esta altura estava quase insuportável. Eu não dava conta do que sentia naquele momento. Profundamente mexida com a experiência eu não sabia o que esperar dali para frente. Em geral, os debates após os filmes são esvaziados. Pedi aos cinelcubistas que se colocassem a postos na porta do auditório pedindo aos alunos que não debandassem de vez. Assim que terminou o filme palmas e gritos animados fariam um desavisado crer que todos vibravam com o filme e não com o término dele.

Não houve uma debandada em massa. Os meninos mesmo dispersos, se dispuseram a ouvir os dois convidados, e foi aí que uma outra geografia entrou em campo. A postura de Jorge diante dos meninos era ao mesmo tempo desafiadora e acolhedora. A sala permaneceu lotada durante todo o espaço de fala dele, que como um maestro foi criando as condições para que a fala fosse democratizada, e aos poucos todos começavam a falar.



Para a alienação dos jovens, Jorge (a esta altura de boina, numa atitude hip hop) propunha o encontro, o olho no olho, a potência da geografia do amor, do afeto, como pregava seu antigo professor na faculdade de geografia, o mesmo Milton Santos. De maneira orgânica, os meninos vivenciavam e expressavam os reflexos da globalização perversa, que nos mantém alheios à nossa história e sobretudo à potência de transformarmos nosso futuro. No debate caloroso falamos de política, das próximas eleições, da ocupação do ambiente escolar e do lugar da educação na vida dos jovens. Movido e incomodado por um dos momentos da fala de Jorge, um menino levanta-se para questionar porque ele havia dito que as mulheres são mais inteligentes que os homens. Nesse momento abriu-se um campo de debate sobre a natureza humana, sobre a sabedoria do feminino na natureza, sobre o machismo, mais uma forma de totalitarismo, e sobre a necessidade de combater qualquer forma de redução ou totalitarismo em relação à mulher, que Jorge chamou da hegemonia do falo. Nesse momento me senti especialmente comovida porque sei que o machismo está de tal forma "conformado" na nossa formação social que ver os meninos sendo apresentados a uma nova forma de pensamento, baseada na compreensão do outro e no carinho era algo muito especial.

A participação atenta e em alguns casos entusiasmada dos meninos no debate, foi resgatando em nós o sentido do trabalho que fazemos há três anos, bem como recolocando a utopia desse mesmo trabalho no seu lugar de condição necessária para a transformação social que acreditamos vir através da arte e da educação. O sonho idílico existe sim, e mesmo que a transformação gerada pelo Lanterninha na vida desses meninos não seja, em muitos casos, palpável, ela é claramente visível. Todos naquele dia saíram de com algo aceso dentro de si.

Por fim, a citação de Sartre que dá início ao filme e que muito se aproxima do sentimento que nos une em torno de um ideal.

"É preciso explicar por que o mundo de hoje, que é horrível, é apenas um momento do longo desenvolvimento histórico, e que a esperança sempre foi uma das forças dominantes das revoluções e das insurreições, e eu ainda sinto a esperança, como minha concepção de futuro."

Jean Paul Sartre



Por: Tenille Bezerra
Coordenadora Executiva do Projeto Lanterninha
tenillebezerra@gmail.com




1 Comentários:

Às 15 de julho de 2010 às 15:25 , Anonymous Daiane Silva disse...

Belissimo texto. Apesar dos percalços do inicio da sessão percebo que a utopia, a paixao,o compromisso e o nosso trabalho cotidiano é o que nos fortalece enquanto equipe, enquanto educadores e enquanto cidadãos ávidos por transformação no espaço escolar através da experiência proporcionada pelo cinema. É isso aí! Vamos manter esta lanterna acesa!

Ah! E um debate conduzido por um educador como o prof. Jorge Conceição d fato faz toda a diferença!! Parabéns!

 

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